Surpresa e ressignificação
- Elis Stropa
- 23 de mai. de 2018
- 3 min de leitura
Atualizado: 15 de nov. de 2018
Há duas semanas fui prestigiar a peça de teatro de uma amiga. Era sábado à noite e o local se chamava InBox Cultural. O endereço levava a uma parte menos popular do bairro de Pinheiros: o número 2355 da Teodoro Sampaio, uma loja de sapatos chamada InBox Shoes. Estranhei, achei que tivesse algo errado com o GPS, mas o número e a rua eram aqueles, e também era a única porta aberta àquela hora, além da farmácia na esquina.
Entrei e percebi que os sapatos ali expostos tinham qualquer coisa de original, eram diferentes do que normalmente se encontra nas grandes lojas (calma, já chegaremos à arquitetura da história). Fui caminhando devagar para o fundo da loja. Não havia vendedores, o que deu a esse curto passeio algo de extraordinário, como numa galeria de arte.
Logo vi a mesa com a moça que marcava os nome é entregava os ingressos da peça. Percebi enfim que estava no lugar certo. A moça apontou para uma escada escura e íngreme logo ao lado dela, que passava por traz das vitrines da loja. Lá em cima havia um bar, um sofá e uma poltrona, os estofados antigos e com uma elegância surrada. Paredes pretas e de tijolinhos aparentes, o chão coberto por um tapete peludo. Caixas de papelão empilhando-se em todos os cantos onde não cabiam pessoas. Ao fundo, a porta que dava para a sala da apresentação. Aquela pequena sala de espera era iluminada por lâmpadas redondas e amarelas, todo o bar decorado com pisca piscas.
Bom, o resto vocês podem deduzir. Deu o horário, entrei na sala de apresentações com capacidade para 50 pessoas, vi a peça (ótima, por sinal, chamava-se "O Dragão Dourado" e foi apresentada pelo Coletivo Quartocê e com direção de Dagoberto Feliz), e fui embora. Mas por algum motivo aquele inusitado teatro em cima da loja de sapatos ficou gravado na minha memória. E o motivo para isso é apenas um: a surpresa pelo deslocamento, em outras palavras, a quebra de expectativas.
O arquiteto tem diversas ferramentas para construir espaços acolhedores e interessantes, dentre elas, a surpresa e a ressignificação (assim como o caso do Bar dos Arcos, sobre o qual escrevi no primeiro post desse blog). No caso da loja de sapatos, o espaço devia ser um depósito que foi reformulado para poder ser alugado e abrigar diversos tipos de apresentações, possibilitando o uso cultural de baixo custo em um bairro nobre de São Paulo com a ocupação de um espaço ocioso. A arquitetura em si não é muito sofisticada e nem exigiu grandes investimentos. Algumas divisórias, móveis de segunda mão (ou vintage, se preferir), instalações elétricas aparentes para suprir os pontos de energia necessários, uma iluminação com clima underground e a instalação (ou talvez reforma) do banheiro.


Todos esses aspectos são para mim sinais de uma postura cada vez mais necessárias nas cidades grandes ou em crescimento: extrair o máximo que um espaço tem a oferecer. Em centros urbanos com espaços cada vez menores e mais caros, fazer muito com pouco é uma demanda urbana atual. Nesse contexto, transformar um depósito cheio de caixas de papelão em uma sala de espera aconchegante junto a uma sala de espetáculos é uma proeza que dialoga com as necessidades atuais de reutilização e resignificação dos espaços.
Como arquiteta, acredito que a demanda por esse tipo de trabalho só tende a crescer, e nós precisamos estar atentos e preparados para lidar com ela. As reformas não precisam significar dor de cabeça e muito tempo de trabalho, elas podem ser simples e ter propósitos claros (como o de criar um espaço para apresentações em cima de uma loja de sapatos).
Para concluir, gostaria de dizer que a experiência realmente me encantou. Esses cantinhos escondidos em São Paulo são responsáveis criar camadas de descoberta e surpresa por toda a cidade. Se, como arquitetos, uma das coisas que devemos projetar é a experiência e a descoberta, que usemos dessas referências!
Para quem quiser saber mais sobre a programação do espaço InBox Cultural, ver mais imagens ou conhecer detalhes sobre a estrutura e a locação, deixo aqui o site: https://www.inboxcultural.com
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